Ler muito prazer

Sob os livros dormem os dedos de todos os escribas e desperta célere o mágico desejo de os ler. 

Ler é uma forma diferente de medir o tempo. Sentir chegar a vontade como um vício e gostar de estar preso. Ausente. Escoar as horas e os dias sobre linhas e inventar uma imensa disponibilidade. Demorar o tempo que é preciso. Deixar escorrer o olhar. Avançar sobre tudo o que já se conhece ou adivinha. Tropeçar sobre as letras mais apagadas. Incauto, perder-se e voltar atrás quando o texto começa a parecer ilógico. Procurar vestígios do que se quer crer que deveria lá estar. Render-se ao cansaço. Deixar descer os olhos adentro da página. Perder a noção do tempo mas sem se dar conta do hiato, recomeçar. Adivinhar a mensagem. Ficar preso num enredo de forma doce ou ácida e não conseguir desistir. Intentar interpretar e, sem saber como, perceber. O que lá está e o que nunca antes tinha estado. Definitivamente criado um outro tempo, um outro espaço de onde não é fácil sair e onde é intenso e tranquilo o medo de se perder. 

Ler é ter a capacidade da devinação, subverter os índices, isolar as hipóteses e criar. Universos de espanto e fantasia. Ler é uma forma específica de olhar, aquela que permite entender além de ver. E é o mundo inteiro que se oferece à leitura através de todos os sentidos: percursos da recepção. E é ainda construir textos sobre textos que não há. É guardar dum instante uma eternidade e tornar-se capaz de elaborar um tempo, um outro tempo, a medida do que se julga saber e textos, outros textos. Perder-se no ciclo infinito da criação. A leitura é acção sobre a matéria. A matéria de que são feitos os mundos: a verdade e a mentira. Só a leitura desafia o real. Só a leitura autentica a mentira. 

Maria Adriana Baptista

Páginas a&b, n.º 7, pp97-98